domingo, 26 de fevereiro de 2012

Morena, tenho um sopro no peito
com saudades de Itauna.
Morena, sopra meu peito pro Norte
pra escutar o forró embalando
nos cabelos seus a noite.
[Adams]

O poeta e seu eterno sofrimento em si

A poesia está para a filosofia, mas isso não faz de um poeta um filósofo. Há algum tempo, peguei-me pensando no ofício do poeta. Por que escrever? Li alguns livros para encontrar respostas a esse questionamento, discuti com alguns amigos que escrevem e outros que são leitores e, acredite, não encontrei a resposta. E continuo sem a resposta, mas acabei criando uma teoria, a qual vou tentar desenvolver nos próximos parágrafos, espero conseguir. A verdade é que Fernando Pessoa já disse em poesia o que direi aqui. Vejamos:

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

Fernando Pessoa deixa bem claro que o poeta, em minha interpretação, não finge a dor no sentido literal da palavra, ou seja, ele é a dor. Portanto, o poeta, a partir do momento que toma consciência de sua importância e “missão” tanto no mundo quanto com as palavras, torna-se dor, sofrimento, amor etc.; o poeta transforma-se em tudo que digere e depois derrama em sua poesia. Se o poeta discorre sobre o amor, ele é o amor; se trata da dor, ele é a dor; se discursa sobre a miséria, ele é a miséria, e assim por diante. Dessa maneira, posso citar Sartre, que define bem a metáfora da arte querendo ser a coisa:

Aquele rasgo amarelo no céu sobre o Gólgota, Tintoretto não o escolheu para significar angústia, nem para provoca-la; ele é angústia, e céu amarelo ao mesmo tempo. (SARTRE. Jean-Paul, 1999).

Portanto, com essas palavras, lanço minha teoria: o poeta vive num eterno sofrer, não porque sofre as mazelas do mundo ou porque sofre de amor, mas porque sofre por sentir, por querer ser a coisa. E é isso que o faz refletir sobre sua condição de homem perante o mundo. E ao ver que com todo o poder que tem sobre as letras e a linguagem, ainda assim não pode mudar o mundo ou acabar tanto com o próprio sofrimento como com o sofrimento do mundo, ou seja, o poeta sofre porque sofre com e pelo mundo. Por isso, defendo também a opinião de que não é todo mundo que pode ser poeta ou artista. Vejamos o que Sartre diz:

[...] depois de estabelecido um acordo, se as rosas brancas para mim significam “fidelidade”, é que deixei de vê-las como rosas: meu olhar as atravessa para mirar, além delas, essa virtude abstrata; eu as esqueço, não dou atenção ao seu desabrochar aveludado, ao seu doce perfume estagnado; não chego sequer a percebê-las. Isto significa que não me comportei como artista. (SARTRE. Jean Paul, 1999).

Atualmente, vivemos nessa sociedade que Sartre citou, na qual os artistas estão cada vez mais escassos, na qual as pessoas não enxergam mais além das coisas, por conta da rapidez do cotidiano, e os únicos que podem fazer isso são os artistas, mas não podemos esquecer que também há artistas que não ultrapassam esse limite do enxergar com outros olhos. Sartre afirmou que os poetas são homens que se recusam a utilizar a linguagem. (SARTRE. Jean Paul, 1999). Para confirmar, Barthes afirmou que a língua é fascista e sabemos que a língua é parte integrante da linguagem.

Há uns dias, estava passando por uma ponte e vi um motorista manobrando um caminhão, daqueles que carrega carros. O lugar em que o caminhão tinha que passar era tão estreito que qualquer pessoa pensaria que o motorista teria de fazer muitas manobras, como uma ré ou coisa parecida. Para minha surpresa, e até mesmo admiração, o motorista conduziu o caminhão de maneira magistral, como um maestro rege uma orquestra. Ele não precisou de ré, nem uma manobra a mais. O caminhão simplesmente passou igual a um pássaro voa no céu; o caminhão foi poético como o poema “Nadador” de Cecília Meireles. Eu enxerguei poesia em segundos que outros não enxergaram, ao contrário, havia pessoas buzinando para o motorista, pessoas correndo para pontos de ônibus, bicicletas ultrapassando carros e pessoas. Ninguém parou como eu parei para admirar e ver poesia em uma manobra de um motorista num caminhão repleto de carros. Parafraseando Sartre, as pessoas não foram artistas, mas eu fui. Mais tarde, ao ler um texto de Compagnon, deparei-me com a seguinte observação:

Lemos, mesmo se ler não é indispensável para viver, porque a vida é mais cômoda, mais clara, mais ampla para aqueles que leem que para aqueles que não leem. Primeiramente, em um sentido bastante simples, viver é mais fácil – eu pensava nisso ultimamente na China – para aqueles que sabem ler, não somente as informações, os manuais de instrução, as receitas médicas, os jornais e as cédulas de voto, mas também a literatura. Além disso, supôs-se por muito tempo que a cultura literária tornasse o homem melhor e lhe desse uma vida melhor. (COMPAGNON)

Com isso, em minha opinião, ler transforma o homem, só traz benefícios. Ler pressupõe um querer comunicar-se; pressupõe querer reunir letras para depois a despejar a alguém ou a algo. No caso do poeta, além de ler, que é indispensável, escrever é mais ainda; escrever está enraizado em suas veias como a vida também corre nelas. Ler e escrever acabam tornando-se ao mesmo tempo indispensável e necessário. Se ler torna o homem melhor, para o poeta, escrever o eleva a outro plano, traz evolução como homem. E, por isso, escrever, ser poeta, é sofrível, em minha opinião, pois a partir do momento que o poeta lê o mundo, quer resolver os problemas aos quais teve acesso, mas percebe que somente a escrita sobre esses problemas não resolverão nada. O poeta sabe que ao escrever não acabará com o sofrimento do mundo, das pessoas e de si por se sentir inútil num mundo que dá importância às coisas que julgam úteis. Assim, é fácil entender porque a literatura é um mar de angústia, e está no limiar da morte, pois em um mundo ligado tanto à utilidade, a literatura não é capaz de nada, de mudar nada, de transformar nada, por isso é tida por todos como inútil. E, a meu ver, é nesse ponto que reside a maior angústia e sofrimento do poeta: não conseguir ao menos ser útil numa coisa tida inútil, ou, ainda, transformar algo inútil em útil.

Francis Bacon também defendeu a leitura como sendo algo valioso para a vida do homem.

A leitura torna o homem completo, a conversação torna o homem alerta e a escrita torna o homem preciso. Eis porque, se o homem escreve pouco, deve ter uma boa memória; se fala pouco, deve ter a mente alerta; e se lê pouco, deve ter muita malícia para parecer que sabe o que não sabe. (BACON, Francis).

Portanto, para concluir minha ideia, registro que o poeta não é o ser que somente é as coisas que escreve, os sentimentos, sofrimentos. O poeta, ao depender da escrita, torna-se o eterno “ser incompreendido” por sentir um forte vazio no peito e não conseguir explicar às pessoas esse vazio, por sentir que sua “missão” na Terra nunca é cumprida, pois não consegue resolver problemas e muito menos dar importância a algo que já não importa mais, como a literatura, ou seja, ao final das contas, o poeta não se vê como o deus que todos o veem, mas que ao mesmo tempo ignoram.