terça-feira, 3 de julho de 2007

PROMESSA É DÍVIDA

Eu estava com a minha bunda grudada na cadeira. Em minha frente, uma janela, com os vidros todos sujos, cheios de merda de pássaros e a maldita janela ainda dava para o quintal. Por incrível que possa parecer, eu não olhava para fora, ficava cabisbaixo, a todo o momento, com os meus pensamentos.

Rascunhei algo. Tinha a cabeça fincada nessa certeza! Os meus poucos neurônios que restam, não estavam falhando tanto assim, a ponto de apagar dessa massa cinzenta encefálica, aquilo que escrevi há mais ou menos, trinta minutos.

À minha frente, naquela inércia conjuntura de madeiras despedaçadas, eu não enxergava papel nenhum, apenas aquele pedaço maldito de madeira, entupido de pó e vazio em sua superfície lisa, porém áspera também.

De repente, atrás de mim, entra um conjunto de músculos e ossos, que pelo cheiro grotesco e amargo, não me atentava para alguém que eu conhecia.

Tornei a minha cara em direção à entrada do quarto, para ver quem era o infeliz que estava ali, atormentando os meus pensamentos e vi que era uma pessoa bem polida, de aparência peculiar, bem vestido, com as roupas pretas e brancas. Resumindo: acho que era um padre!

O padréco levou as mãos às narinas e resmungou, “que cheiro horrível é esse? Como você consegue viver com esse cheiro?”. Respondi que eram os meus pensamentos desabrochando, tornando-se reais e tomando vida. Ele apenas cuspiu algumas palavras, que soaram mais ou menos assim: “você é louco!”. “Louco? Não senhor!”, respondi. “Esse cheiro é comum. É apenas uma mistura nova de aromas, que segundo o meu chefe superior, me trará muita sorte e redenção de todos os atos que cometi.”

“O quê? Esse cheiro de enxofre e de merda?”, perguntou-me o infeliz vestido de zebra. “Esse cheiro não vai levá-lo a lugar algum! Vai apenas matá-lo!”, insistiu ainda o representando de Deus na Terra. “Háháháháhá! O senhor sai do seu ninho de pecados invisíveis aos homens, mas confessados a Deus e quer me implicar a sua lei? Quer me torturar com seus perjúrios? Não! Aqui não! Ainda continuo mais puro que o senhor, meu caro!”, esbravejei em voz alta e escarrada.

O padréco, vestido para o Halloween, volta-se para as paredes de meu aposento e enquanto admira a obra de arte que pintei, ou melhor, escrevi naquele conjunto de cimentos, cal, areia e tijolos, ele, o padre, faz o sinal da cruz e em voz fraquinha, bem baixinha, faz uma oração, para que me purifique e seja salvo do inferno.

“Tarde demais, padréco!”, gritei à zebrinha teimosa que insistia em purificar algo em mim.

“É merda! E é merda humana! E o pior: são passagens escritas em uma língua já extinta, morta por um povo que já não existe mais! O povo que iniciou a fala e escrita humana.”, resmunga o padre sozinho e admirado pelas paredes.

“Sim padre. Sim! Esse é o meu legado que deixarei para a humanidade. Passagens dizendo como será o fim dos tempos, contando a verdade de tudo o que foi dito e escrito a respeito de Jesus, Deus e CIA.LTDA., entre muitas outras coisas, que se a humanidade soubesse, nós não estaríamos do jeito que estamos, fazendo guerras, mas sim, muito, mas muito pior. Teríamos nos exterminado da Terra, com toda a certeza!”, afirmei tranquilamente para meu novo amigo, o Padre.

O meu amigo, após segurar seu café da manhã na garganta, saiu correndo de meu quarto. Nunca mais ele voltou para me visitar. Senti tanta falta dele. Eu não tinha ninguém para conversar e ele era o único que me ouvia, mesmo sendo apenas blasfêmias.

Em um dia coberto pela penumbra, fugi. E algum tempo depois, descobri que o padre havia lançado um livro, com as passagens que eu havia escrito nas paredes. Resolvi então, procurá-lo para esclarecer um problema não resolvido do passado.

Ao chegar a casa dele, fiz uma surpresa: entrei sem ser convidado. Afinal de contas, não sou vampiro e muito menos demônios, que só podem entrar na casa das pessoas se forem convidadas.

Lá, encontrei-o, estirado no sofá, com a boca aberta, cheia de insetos devorando o pouco de carne que ainda tinha em sua boca. Nos braços, marcas, desenhos cabalísticos, inclusive na testa e também no tórax.

Ao vê-lo naquela posição. Peguei-o, coloquei-o em minhas costas e o levei ao quintal de sua própria casa. Lá, cavei um buraco, joguei o corpo e cobri com a terra que havia arrancado do chão.

Vocês, meus vermes leitores, podem achar estranho, uma pessoa como eu, realizar um enterro, mas eu tinha que fazer. Afinal de contas, o padre não descansaria em paz, se continuasse no estado em que se encontrava.

Resolvi fazer a minha última boa ação, antes de meu chefe vir cobrar a dívida que tenho com ele. Antes de ele vir apagar a última vela que acendi em oferenda a meus pais.

domingo, 1 de julho de 2007

LEVE SOFRIMENTO

Algumas Luas passadas, no meio da noite, eu peguei meu travesseiro falando com o meu tênis, chamado All-Star. Eles estavam em uma prosa prazerosa. O falatório era tanto que até despertou-me de um sono gostoso. Eles falavam da vida. Não da minha, mas da alheia. Quando vi a cena, levantei-me na hora, corri à parede para acender as luzes, mas não acendi. Então, corri para a cadeira e liguei o meu computador. O quarto iluminou-se com o pouco da claridade que a tela do monitor reluzia nas paredes. Ali, sentado em minha cadeira, eu ouvia a animadora conversa, que já durava algumas cantadas de grilos. Enquanto proseavam, pensei: “como podem falar da vida alheia, se meu travesseiro apenas recebe a minha cabeça todas as noites e ninguém mais entra em meu quarto? E o meu tênis, como pode querer falar da vida alheia, se ele apenas calça meus pés e de mais ninguém?”. Foi exatamente no ponto mais alto da conversa, o clímax, que percebi que eles falavam não só de mim, mas dos muitos “mims” que eu tinha e também das pessoas que viviam comigo.
Aquele papo começou a ficar estranho. Sai do quarto e fui ao banheiro lavar o rosto, escovar os dentes, vestir a minha roupa de dormir, composta de uma calça de moletom e uma camisa de flanela, com a manga comprida. Enquanto tudo isso passou em questão de estaladas de dedos, eu pensava apenas que toda aquela conversa não ia dar em nada e que poderia ser apenas uma ação de algum neurônio em minha cabeça, transformando o meu sonho em pesadelo.
Sai do banheiro. Desci à cozinha. Tomei um copo de água gelado, porque só tomo água gelada e tornei a subir as escadas, de volta ao meu aposento. Quando parei na porta, levei um susto. Meu travesseiro estava no chão e meu All-Star simplesmente havia se escondido em algum lugar.
Achei tudo aquilo curioso. O que estava acontecendo ali? Que conspiração era aquela contra a minha pessoa? Será que era realmente tudo um sonho?

Ao ficar espantado com o acontecimento, decidi não pegar o travesseiro do chão e deixar o All-Star onde quer que ele estivesse, esquecendo a hipótese de procurá-lo ainda aquela noite. Claro, que só fui achá-lo mais tarde, após procurá-lo muito, no dia seguinte.
De repente, eu estava inconsciente, mas conseguia sentir o meu corpo rolando de lá para cá na cama. Eu estava com frio e coberto por duas colchas, um cobertor bem grosso e macio, e mesmo assim, o frio não passava, persistia em atingir os meus ossos e fazer do meu sono um leve sofrimento.

Em uma tarde tranqüila, ao chegar a casa, meu travesseiro e meu All-Star não estavam em meu quarto. Sumiram! Passaram dias fora.
E em outra noite, depois de chegar da faculdade, entrei em meu quarto e peguei o All-Star e o travesseiro calados. Estavam atônitos. Eu os olhava, com a esperança de que dissessem algo, mas nada foi dito. Pelo menos, dessa vez, à noite, consegui dormir.