domingo, 27 de junho de 2010

ENTRE UMA PIZZA E UMAS LATINHAS DE CERVEJA

Acho mesmo que a vida é recheada de pequenos atos. A mim, cabe escolher a cobertura. Você deve se perguntar agora o porquê de começar essa crônica falando de comida. Pois é, escrever e viver estão ligados ao preparo de um prato, a uma receita. Escrever e viver são receitas, mas, em alguns momentos, as pessoas esquecem ou não aceitam receitas de terceiros e resolvem improvisar suas próprias receitas, chegando a matar, cair em desespero, chorar por coisas que aparecem mascaradas de coisas ruins e que nos enganam com fisionomias toscas e grandiosas, mas que não passam de pequenas coisas, somente pequenas coisas, transitoriedades. Para piorar, algumas dessas pessoas chegam até a achar que pode ser o fim do mundo, que o túnel da boa esperança está sendo fechado por uma enorme pedra que sufoca tudo, deixando tudo negro, tudo apertado, tudo irrevogável.

Eu resolvo todos os meus pequenos atos com outro pequeno ato, tão simples quanto falar um oi em um dia ensolarado ou dizer bom dia para as pessoas que cruzo no caminho ao trabalho. Resolvo uma pequena coisa como, por exemplo, uma conta bancária no vermelho, tomando uma latinha de cerveja. Noutro dia fui ao supermercado e, ao sair, deixei a pizza cair com o recheio para baixo, sendo sugada pelo chão. Na mesma hora, a minha irmã me disse que os recheios são atraídos para o asfalto, pra o chão, para baixo. Fiquei puto da vida, mas também resolvi o problema de forma simples: tomei outra latinha de cerveja. Não deixei uma simples pizza me levar com ela ao chão, me levar para baixo. Isso também tenta acontecer quando meu time perde, mas lá vou eu até a geladeira, pego uma latinha de cerveja e resolvo tudo com alguns pequenos goles desapressados. Até mesmo uma dor de estômago, que me pegou outro dia, deixo boiando no meio de uma latinha de cerveja. E quando menos percebo, lá estão todos os problemas sendo levados pela água, malta e cevada. É, e neste caso, literalmente levados pela água.

Assim, vou pra cama. Durmo e acordo pronto para mais uma maratona de azar, de pequenas coisas me atormentando no ouvido, querendo me assustar e vestindo uma máscara maior do que podem suportar, mas, por uma fração de segundo, lembro que a vida é recheada de pequenas coisas e que não farei dos minutos de sono uma pequena parcela do meu dia, já que, no final, posso escolher a cobertura.


Caraguatatuba, 2010.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

MARÉ CHEIA

Cresci pescador, meu pai me ensinou assim, não é profissão. E, enquanto meus amigos ficavam impressionando as menininhas da escola e passavam o dia todo com os olhos grudados na tela do computador, eu navegava para o meio do mar com meu pai, ter contato com os animais, a natureza, e controlar meus medos. Ainda lembro quando contava as marés, contava as ondas e suas ressacas. Eu também contava as marcas na areia, que mudavam diariamente por conta do mar. Quanto dei por mim, estava pescando no meio da imensidão azul, sozinho, com a barba grisalha no rosto que um dia já foi de menino, e a vaga lembrança que levo comigo é a de meu pai me ensinando a fazer o que faço hoje: a pesca.

Nunca fui muito dado aos estudos. Enquanto meus amigos estavam na escola, eu estava no oceano tendo outras lições, aprendendo a língua dos peixes, a linguagem do das ondas. Mesmo assim, pedia para que meu filho fosse um homem diferente de mim, queria ser para ele o que meu pai foi para mim: um herói, por isso o incentivei a frequentar a escola, a estudar e fazer uma faculdade, a falar a língua dos homens, ser alguém na vida, mas sem esquecer de onde veio, de onde é a sua origem: do mar, porque além de ser a minha vida, também foi onde conheci a mãe dele. Nós dois éramos muito jovens, tínhamos apenas 11 anos de idade. Ainda lembro o dia em que a vi pela primeira vez como se tivesse sido ontem. Eu estava chegando à praia com meu pai, quando avistei uma garota correndo solta, de braços abertos, ao lado do irmão e do pai nas areias. Eu vi o seu olhar de lado, e também não tirei os olhos dela. Também vi os cabelos dela se fixando no meu olhar, enquanto navegavam no ar, banhados pela maresia e que, revoltados, não obedeciam aos seus caprichos. Depois desse dia, não a vi mais. Só voltei a reencontrá-la anos depois, quando contava com 19 anos. Achei que não se lembraria de mim, mas lembrou. Conversamos. Nos beijamos e, alguns meses depois, começamos a namorar. Seis anos mais tarde, casamos. Foi um dos dias mais felizes da minha vida. O pescador e a princesa.

Além da minha esposa, no dia do meu casamento, meu pai foi marcante para mim, assim como foi até o seu último suspiro. Antes de abraçar a morte, chamou-me ao hospital. As lágrimas começaram a correr do meu rosto ao vê-lo na cama, entrevado, com olhos pregados no teto. Aposto que se imaginava no mar. Antes de fechar seus olhos para a eternidade disse que tinha muito orgulho de mim, que era para cuidar bem de minha mãe e de toda a nossa família, e para que eu conversasse todos os dias com o mar, e ainda afirmava: ele está lá, não deixe de falar com ele; agradeça-o sempre, agradeça-o... Não deu tempo de perguntar ele quem, e sai do leito aos prantos. O enterro foi do jeito como meu velho pai queria: ao mar, com as cinzas navegando nas espumas das ondas, sendo oferecidas para os peixes que sustentaram nossa família durante anos e anos.

Uma semana depois, peguei meu barco e o puxei para a beirada da praia. Olhei para o horizonte, respirei fundo, abaixei a cabeça e fugi para o mar. Fiquei o dia inteiro, e nada. Nem um peixinho, nenhum camarão. E assim se repetiram os dias, semanas após semanas. No final do mês, eu estava em alto mar, sendo empurrado pela maré, quando me lembrei de meu pai e de como seria diferente a pescaria se ele ainda estivesse comigo. Lembrei das nossas últimas palavras, que ressoavam em meus ouvidos como uma música de marinheiro. De repente, tive um estalo. Meus olhos pararam no horizonte, mas não estavam ali. Levantei, fechei meus olhos, inclinei a cabeça aos céus, levantei as mãos e comecei a rezar, agradecendo por tudo, mesmo sabendo que fazia semanas que voltava com as mãos vazias. Depois de alguns minutos, não aconteceu nada. Nenhuma imagem, nenhum cheiro, nenhum som. Olhei para todos os lados e não vi nenhum camarão saltando e muito menos algum peixinho rondando meu barquinho. Sentei decepcionado com as minhas orações e do milagre que esperava e que não veio. No final do dia, comecei a puxar as redes e percebi que algo estava diferente. Com muito esforço eu suava enquanto puxava a primeira rede e, com muita dificuldade, consegui enxergar os peixes e camarões que enchiam a minha rede de ponta a ponta. Ao terminar todo o trabalho e separar em baldes os peixes dos camarões, dei partida no motor e, virando o rosto para trás, pude ver a imagem de meu pai. Ele estava lá, olhando para mim, velando-me com um sorriso que demonstrava estar em algum lugar bom. Agradeci, continuei com a minha partida em direção à terra firme e despedi-me com um sorriso e uma aceno tímido.

Não tive dúvidas. Para mim, meu pai era a pessoa de quem ele tanto falou no dia de sua morte e, antes dele, seu pai, e assim por diante, como uma tradição seguida pela família, mas que não contou para não me assustar, por eu ser pequeno na época. Diferente de meu pai, contei a história ao meu filho, que estava distante de mim, mas que depois se aproximou e começou a pescar comigo, levando a pescaria a sério, como se cada vez que embrenhássemos o mar fosse a última. Quando meu filho completou 18 anos, ele embarcou no ônibus para a capital, enquanto eu estava aos prantos, para ingressar na faculdade que tanto procurou durante a adolescência e disse as seguintes palavras: pai, não se preocupe, sempre voltarei para poder pescar com você, porque pescar para mim é uma maneira de reencontrar o vovô, a minha família, você, a minha origem e também de reencontrar a mim mesmo.

terça-feira, 22 de junho de 2010

E O VELHO FUTEBOL ARTE VOLTOU

A equipe da Costa do Marfim, dos elefantes destemidos de Drogba, transformou-se na Costa da Ferradura, dos cavalos africanos de Keita. Os grandalhões de uniformes apertadinhos não repetiram a muralha e a proeza que tiveram diante da equipe de Portugal, do metrossexual Cristiano Ronaldo. E enquanto a gorduchinha rolou por pouco mais de 90 minutos, o brazuca Luiz Fabiano compôs um gol de placa e também mostrou que os brasileiros sabem usar melhor que Maradona a tão comentada mão divina da Copa de 1986, mudando, assim, a nacionalidade de Deus. Além disso, adiou ainda mais a chance de Dieguito se tornar o Rei do Futebol, enquanto nós reinarmos absolutos nos gramados.

É a primeira vez que assisto a uma sinfonia com dois maestros regendo a Orquestra: Fabuloso e Kaká. Foi um espetáculo de encher os olhos e os ouvidos. O protagonista levou o público ao êxtase, enquanto seu parceiro, o coadjuvante da Ópera, foi injustiçado e, após a grande atuação de Keita, o craque da camisa 10 foi retirado de cena. Não posso esquecer o nosso anão todo poderoso da seleção, Dunga, que saiu debaixo de uma chuva de elogios, assobios e palmas, por ter sido o melhor diretor do espetáculo, comandando a sinfonia por trás do palco.

Se não cessarem essas sessões sinfônicas, é bom nossos primos lusos colocarem-se de prontidão e ficarem de mastros a postos, pois nossos maestros e músicos farão a Grande Esquadra Lusitana volver, abortar a rota para a taça de campeã e aprenderem a dançar o velho e bom samba inventado por nós, é claro, ao som de gols compostos pelos pés e, por que não, também pelas mãos de nossos artistas da bola. Que venham nossos primos para terem uma aula de música e dança, regidas por cavaquinhos e muita, muita ginga.




Caraguatatuba, 2010.